sábado, 19 de março de 2011

Liberdade Incógnita

Louise era o tipo de garota que escrevia em diários. Tinha seus diários de folhas coloridas com adesivos brilhosos e a cada dia da semana preenchia linhas de acontecimentos com uma caneta de gel de cor diferente. Seu pai adquirira o hábito de bisbilhotar nos diários da filha, e por isso há três anos ela começara a registrar tudo em código.

Em vários aspectos era como qualquer outra criança. Desenhava com a assimetria característica da idade o contorno da mãozinha, com linhas tortas e curvinhas discrepantes, tudo feito com lápis de grafite bem claro, meio apagado, e geralmente com borrões de tanto apagá-las e tornar a fazê-las. Em outros desenhos, perninhas grudadas no pescoço que alongavam-se até a extremidade inferior da folha. Um quarto de sol das três sempre despontando no vértice superior direito, num contexto em que o chão não existe, as flores e tudo mais ficam flutuando baixo.

Tinha a intuição apurada. Mostrava-se delicada e generosa o tempo todo. Seus gestos de gentileza encantavam a todos com quem estabelecia o mínimo contato, até mesmo através de um olhar despretensioso podia-se sentir a pureza e sinceridade da menina. Além do que, seu sexto sentido era algo perceptível, que lhe permitia exercer, sobre praticamente qualquer pessoa, um domínio quase hipnótico.

Era de uma cultura e educação tal que chegava a causar inveja nos pais das suas colegas de aula. Em encontros, jantares e outros eventos sociais, não raro era mencionada quando o assunto se tratava de casamento, era a candidata predileta à futura nora pelos pais dos colegas meninos que pertenciam ao mesmo círculo social, ou seja, as famílias da alta sociedade.

Seu maior pecado era pintar bigodes e dentes de preto nas capas de business magazines estampadas pelas faces dos pais com seus sócios. Louise tinha o costume de colecionar coisas, orgulhava-se disso e fazia questão de mostrar e esmiuçar em histórias infindáveis as particularidades de todos os itens de cada coleção a qualquer um que se mostrasse interessado em conhecê-las. No entanto, mantinha em segredo sua coleção predileta: um conjunto composto de cento e noventa e sete batons em tons avermelhados, peças de todos os lugares do mundo por onde já havia viajado com os pais.

Sempre dava um jeito de comprá-los escondidos e guardar sem levantar suspeitas dos pais, conhecia-os muito bem e sabia no que ia resultar se soubessem da existência dessa coleção. Seria uma ofensa para seu pai e despertaria a paranóia de sua mãe, que por fim mobilizaria no mínimo uns três especialistas em behaviorismo a fim de entender a origem desse comportamento. Supostamente uma afronta, um hábito que seria considerado repulsivo e vulgar.

No fundo no fundo, Louise sabia que as paranóias de sua mãe tinham lá algum fundamento, e que por trás da materialidade inânime de um batom vermelho qualquer existia mesmo algo mais, que até então mantinha-se subentendido. Seus pais nunca tomaram conhecimento da coleção. Mais tarde perceberam, nunca tomaram conhecimento de nada, inclusive da própria filha que pensavam ter. Sentia medo e insegurança, não gostava que as pessoas encostassem-se a ela, pelo receio que tinha de que pudessem ler ou sentir seus pensamentos, algo que a preocupava e envergonhava.

Louise cresceu, tornou-se uma moça tão encantadora e fascinante quanto era quando menina, mas agora, antes mesmo que pudessem contemplar a graça de sua personalidade, eram traídos pelos olhos. O tempo cobrou-lhe de volta a infantilidade, e como troco lhe pagou com os anos um bocado de sensualidade. Os olhares voltavam-se para seu corpo, e nele colavam-se ardendo em desejo. Em curvas que pareciam imantadas, magnetizavam-se os olhos alheios. Seu andar meigo e pueril dava lugar a passos vagarosos, substituindo o instante fisiológico de união das pálpebras dos admiradores, que por instantes, sem se darem conta as tinham paralisadas. Louise era mulher. Exalava feminilidade e delicadeza ao mesmo tempo em que transbordava em inconsciente provocação. Ela se tornou substantivo materializado, Louise era a tentação. Pura, nua e crua, tentação à flor da pele.

A superfície do corpo quente, aquecida por horas em outros corpos, entrava em contraste com as luzes frias azuis, quando na varanda da casa despedia-se do último cliente. Num robe de cetim vermelho, braços cruzados de modo a descansar as palmas das mãos sobre a cintura, apoiava-se na moldura da porta. No sereno sentia o cheiro de madrugada, exatamente no estreito daquela porta o odor de relento entrava em choque com o aroma de canela e jasmim, vindo de dentro. Louise sorria discreta, sozinha, com o cantinho da boca. Tirava do bolso do robe um batom vermelho, deslizava macio nos lábios e tornava a cruzar os braços. Ficou ali por mais três minutos... ainda conseguia ficar acordada por mais alguns, tempo suficiente para registrar, não mais em códigos, o que quisesse em seu diário.