sábado, 29 de janeiro de 2011

Viagem sem Volta

Terça-feira pós feriado. Caos de inúmeros gêneros, idades e tons de voz. Alguns pareciam inconformados e abraçavam outros como se cada célula de seus corpos clamasse com urgência pelo calor alheio. Aproveitando toda a superfície de contato corporal possível, procuravam sugar o máximo de algum tipo de combustível raro e essencial. Mutualismo em dose única. O tipo de coisa que vem em pacotes de brinde grampeados a passagens rodoviárias.

Me oriento pelos retângulos verdes luminosos na altura da minha segunda testa imaginária. Um padrão de localização que te confundiria aqui ou na Cordilheira dos Andes, pode acreditar. Dezoito, corredor, e pelo visto a única poltrona vazia. Na dezessete babava um cara de camiseta vermelha, com óculos escuros e uma bengala. Nada contra caras de camiseta vermelha, mas em tragadas de minha memória não me recordo de ter sentado ao lado de cara nenhum com uma camiseta vermelha. É como se você jogasse um par de dados e eles parassem em 5 e 2. Nunca vi pararem em 5 e 2, e hoje os meus dados eram vermelhos e espelhados.

Minhas duas mochilas, abarrotadas, não couberam nos suportes de bagagem do teto. Uma acomodei no colo, outra atrás das canelas. A próxima etapa está no limite do vidro entre o freezer e o inferno, do lado de lá brota um sorriso e um tchau avulso do meu velho pai com seus cabelos negros que mais parecem acenar para mim também. Essa marca de tinta vagabunda deve ser a mesma que usam os alpinistas. Eu enxergaria meu pai lá embaixo, do topo do Everest, lá embaixo acenando pra mim. Aliás, acho que nunca mesmo já vi um alpinista na vida.

O ônibus vai partindo, devolvo o aceno com vontade numa confusão de orgulho e saudade prematura, coisa que não vejo repetir-se naquela cena. Todo aquele santo combustível de antes me pareceu nada mais do que bosta invisível. Um bando de hipócritas no Alaska bons demais para deixarem ser vistos dando tchauzinho feito criança. Nossa troca de acenos se mantém até que vem uma parede, e imponente cobre meu pai. Paredes de estação rodoviária servem para isso, são pensadas para que você e seu familiar não tenham de fitar olhos e manter mãos balançando eternamente. Desisto da janela, recosto e já sei que estou em quarta dimensão.

É cedo demais para tirar o bolinho de carne da mochila, e tarde demais para ir ao banheiro. Vejo as pessoas no reflexo dos televisores desligados, que aliás, só servem para isso mesmo, quase todos estão com fones nos ouvidos. Cada um em seu mundo, numa segunda camada da quarta dimensão. Esqueço dos fones e lembro da primeira camada, a camada em que fixam-se aqueles muros quadrados invisíveis, que tecem linhas para determinar o limite de cada um. Cada quadrado de muro transparente envolve um passageiro e tem um sensor de cotovelo que emite um sinal sonoro ao invasor. Meu sensor deve estar com defeito, acho que sempre esteve. Graças à seleção natural os nossos cotovelos adaptaram-se ao material de que são feitos os muros e por este motivo podem transpor-lhes sem problemas.

Araucárias e pinus desfilam pelas janelas e a única trilha sonora possível de combinação é Mendelssohn. Meus dedos dos pés entram em sincronia com um trecho decorado da minha composição predileta, não me pergunte o nome. O raio de sol da tarde, na minha cara e no reflexo da camiseta vermelha alheia, marca os tempos brilhando irritante entre o batalhão de pinheiros jovens. Um cotovelo estranho à esquerda é o que me separa de casa.

Olhava para as janelas da direita, quando me dei conta de que todos os passageiros do corredor tinham as cabeças voltadas às janelas opostas e que os passageiros das janelas não se atreviam a olhar em outra direção que não fosse a de sua própria janela. Parecíamos bonequinhos, bonequinhos com dor no pescoço. Todos enfileirados nos seus mundos de fones e baba em poltronas com babadas secas de outros quinhentos.

Por dois minutos me senti a pessoa mais solitária do universo e com arrependimento de proporções iguais. Um impulso estranho seguido de estrondos e da parada brusca do ônibus, projetou os passageiros para fora do coma, e numa fração de segundo já estavam mais arrependidos do que eu.

- Todo mundo parado que a gente não vai machucá ninguém!

Duas crianças de aproximadamente onze anos, loiros e gêmeos. Calças iguais com listras verticais coloridas. Meias amarelas nas mãos, uma arma e uma faca para cada um. Brinquedos de heróis. Não fosse pelo barulho de tiro e o sangue do motorista escorrendo pela porta aberta do corredor, todos explodiriam em gargalhadas ou reclamações de atraso.

- A gente quer tudo aqui! Cala boca e coloca tudo dentro!

- Tudo de valor! e se a gente ouvir grito ou choro, em dois segundo a gente apaga todo mundo!

- Passam tudo agora!

Uma fronha com cheirinho de tutti-frutti na mão que segurava a faca, a cada passageiro ficava mais cheia de dinheiro, anéis e outras coisas caras. Não consegui ver tudo o que colocavam, só fiquei sentada ali esperando a minha vez. O arrependimento que tomara conta de mim há minutos atrás, dava lugar à sensação de andar de bicicleta sem as mãos. Só fiquei ali e esperei a minha vez. Meus brincos eram duas bolinhas de plástico, eu tinha doze reais e quinze centavos, minhas roupas nas mochilas, uns papeis e outras coisas pequenas no bolsinho interno da jaqueta.

Seria morta por crianças, num ônibus, com fronhas cheirosas e em bicicleta sem as mãos. Gostei disso. Sempre tive medo de morrer afogada ou coisa assim, com uma cabeçada numa quina de mesa ou de escada, intoxicada com monóxido de carbono ou coisa assim. Só se morre uma vez, então fiquei feliz por isso. Uma morte tão incrível e equivalente a qualquer coisa bem divertida, um negócio único nessa porcaria de mundo e eu juro que merecia o primeiro lugar no próximo Darwin Awards. Dali a pouco eu já seria toda aquela merda de mais uma estrela no céu e blábláblá.

A tensão dos passageiros logo começou a me irritar, mas era só inspirar sem pressa e me sentia novamente na bicicleta andando sem as mãos. Minha vez. Tranquila, coloquei na fronha o que tinha de mais valioso, dois pedaços de papel dobrados mil e quinhentas vezes e uma três por quatro em Polaroid do meu pai quando tinha mais cabelo. Perderam-se no meio dos anéis de ouro e das notas de cinqüenta. Os olhos do pequeno delinqüente seguiram atentos meus amuletos sendo retiradas do bolsinho da jaqueta até caírem quietinhos dentro da fronha. Encontrou um dos papéis... “NEOQUEAV bonequinha”.

Degolou meu companheiro de poltrona, visitou meu pensamento na idéia de combinar a baba dele com a cor da camiseta. Me abriu um sorriso discreto e dos seus olhos saíram um brilho que aumentava cada vez mais. A luz invadiu o ônibus, o menino me olhou fixo e cutucou meu ombro com a arma. Paralisia em gotas corria quente nas minhas veias:

- Com licença, preciso mijar... dá licença, quero mijar! – cutucava o cara do lado, com a sua bengala. Era cego.

Um abrir de olhos e todo aquele misto de realização esvaiu-se na funcionalidade da minha retina. O cheiro de banheiro havia me amortecido e por pouco não me afogo na própria baba. Dou licença. Vejo-me novamente na mediocridade de uma vida enfadonha, num ônibus enfadonho, fazendo uma viagem enfadonha. Como nas minhas visitas a todo lugar, a solidão se tornara diretamente proporcional ao número de pessoas que dividiam o ambiente.

Checo no bolsinho as minhas preciosidades, tudo intacto.

No outro bilhete, uma dose cavalar de floral em letras. Como que num gole modesto e fatal, não sabia mais para onde estava indo e nem quando iria voltar.

“Meu anjo, o pai sente muito a tua falta. Ninguém entende, dizem que estou louco, que desde quando aconteceu ainda não consegui aceitar e que já devia ter parado com isso. Eles não entendem, mas não importa, o pai vai sempre esperar aqui... cuidando, até voltar a bonequinha do pai.”

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